15 de mar. de 2012

O poder da matemática

Artigo do jornalista Merval Pereira, no jornal "O Globo", hoje, 15 de março de 2012

Têm sido mais comuns do que desejaríamos os sinais de que o ensino de matemática entre nós está abaixo das necessidades do país, de que são exemplos os dados disponíveis, que mostram uma aprovação de apenas
42,8% dos alunos do 3 ano do ensino fundamental com os conhecimentos básicos de matemática.

Em apenas 35 cidades do país, mais da metade dos alunos do 9º ano do ensino fundamental sabe matemática, teria nota superior a 5.

Apenas 11% dos jovens que alcançam a 3ª série do ensino médio têm aprendizado suficiente na matéria.

Roberto Boclin, doutor em Educação e chefe de gabinete da Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Rio, considera que a questão da educação, complexa por si só, “envolve pensamentos políticos que tangenciam o absurdo, como currículo único obrigatório na educação básica brasileira.

Por outro lado, destaca que “um currículo com 12 disciplinas, nem na Ásia”.

Para ele, os currículos deveriam oferecer “oportunidades de interesse diversificado, variando entre eles pelo menos de 30% a 60% dos conteúdos, com no máximo cinco disciplinas, de modo a atraírem candidatos com propostas mais adequadas às suas realidades e vocações, e assim não abandonarem o curso no meio por absoluta falta de interesse”.

Como o ensino médio é prioridade, pois do seu êxito dependem os caminhos do ensino superior ou do emprego futuro dos candidatos, “são completamente inaceitáveis evasões de 50 a 60% dos alunos ingressantes, muitos ainda no 1º ano”.

Boclin diz que “basta olhar para outros, como os países asiáticos, a Finlândia e historicamente a Alemanha, que encontraremos inúmeros modelos que poderão transformar a educação brasileira”.

Quando acabar a maré favorável dos preços na exportação das commodities, e for preciso competir na indústria da transformação, “a formação profissional será essencial”, destaca Boclin.

Para além dos vexames internacionais em exames como o do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), em que nossos representantes ficaram na 57 colocação, à frente apenas de alunos de outros oito países, o professor Arnaldo Niskier, da Academia Brasileira de Letras e ex-secretário de Educação do Rio, que selecionou os exemplos da abertura da coluna, vê uma indicação de que perdemos competitividade num mundo cada vez mais dominado pela alta tecnologia, onde a matemática tem importância fundamental.

“Não resta dúvida sobre a utilidade de seu aprendizado, mesmo para aqueles que não se destinam às carreiras técnicas. Conhecer seus pormenores faz bem até quando o estudante deseja, por exemplo, escolher um curso de filosofia. Platão não foi filósofo e matemático”, analisa Niskier.

Ele ressalta que o cérebro humano, com seus reconhecidos cem bilhões de neurônios, “evoluiu para lidar com o mundo físico e se utiliza da linguagem matemática para cumprir a sua finalidade, nas questões do pensamento”.

Niskier destaca o papel da lógica em todo esse processo, citando o cientista da computação dos Estados Unidos Jeff Raskin: “A lógica humana nos foi trazida pelo mundo físico e é, portanto, concordante com ele. A matemática deriva da lógica. É por isso que a matemática é concordante com o mundo físico.”

Arnaldo Niskier ressalta que, “mesmo trabalhando com incertezas, a ciência dos números tem verdades inabaláveis, como é o caso da geometria euclidiana, hoje tão acreditada como há 300 anos a.C.

Também Francisco Antonio Doria, professor da Coppe/UFRJ, matemático e filósofo, membro da Academia Brasileira de Filosofia, toma exemplo do dia a dia para falar do nosso déficit de matemática: “Pega um smartphone. Clica em cima do ícone do GPS. Aparecem logo o mapinha e o alfinete virtual que mostram onde você está. Com precisão de centímetros. Por trás desse pequeno milagre da tecnologia, está, entre outras coisas, uma das teorias mais abstratas da ciência moderna”.

Ele se refere à Teoria da Relatividade, que Einstein anunciou e publicou em 1915. Quando foi anunciada, ensina Doria, era “tão pesadamente matemática, tão complexa, tão fora do senso comum, que, dizia-se, apenas meia dúzia de pessoas a compreendiam naquele tempo”.

A matemática manda em nossas vidas, hoje em dia, e nós mal nos tocamos a respeito, comenta Doria, que passa a relacionar: as taxas de juros que o Banco Central fixa surgem de uma técnica chamada teoria das metas de inflação, fortemente matemática; computadores funcionam com algoritmos, “e os primeiros exemplos de algoritmos aparecem numa outra área rarefeita, hiperabstrata, da ciência do século XX, a lógica matemática”.

Doria é autor, com Greg Chaitin e Newton da Costa, do livro “Gödel’s way”, sobre a história “divertida” de Kurt Gödel, matemático vienense, “notório por seu brilho, suas conversas nos cafés e porque nos seminários aos quais comparecia sempre havia uma moça bonitinha atrás dele”. Em 1931, anunciou um resultado “tão obscuro e complicado, que dizia de uma espécie de impossibilidade de se esgotarem as verdades matemáticas, o teorema da incompletude de Gödel”.

Entre as técnicas usadas para demonstrar seu resultado estão algoritmos — como os que fazem funcionar smartphones e computadores.

“Mistura de abstrato e concreto que só a matemática possui”, define Doria.

Para ele, “vivemos num mundo imerso em uma matemática, pesada, obscura, difícil — e mal o percebemos. E muito menos no Brasil, onde tem gente que ainda acha que computador é maquininha de jogar games”.

Doria não tem dúvidas: “Talento e habilidade matemáticas são essenciais para se fazer capitalismo, para o crescimento econômico — e disso o Brasil tem muito pouco”.

Ainda estamos, diz ele, “à margem do que movimenta, empurra, o mundo contemporâneo”.

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