19 de mar. de 2012

Renegociação da dívida deve ir além dos juros, defende Darcy

“Para reduzir a dívida, temos que cobrar 35%
retroativo da diferença entre os indexadores”
 
Clipping do Jornal do Comércio desta segunda-feira (19), com entrevista do economista Darcy Santos ao jornalista Guilherme Kolling.

O economista Darcy Francisco Carvalho dos Santos se dedica ao estudo das finanças públicas do Rio Grande do Sul há três décadas. Auditor aposentado da Fazenda, também atuou na parte administrativa da Secretaria da Educação nos anos 1980, assessorou o ex-deputado Bernardo de Souza (PPS) e atualmente integra um grupo de estudos da bancada do PSDB na Assembleia Legislativa sobre as contas do Estado, a convite da ex-secretária Mariza Abreu.

Darcy avalia como correto o movimento do governador Tarso Genro (PT) em renegociar os índices de correção da dívida do Estado com a União, que supera R$ 40 bilhões. Mas entende que não basta diminuir os juros de 6% e mudar o índice de correção da inflação do IGP-DI (Índice Geral de Preços - Disponibilidade Interna) para o IPCA (Índice Nacional de Preços para o Consumidor Amplo).

Para ele, o governo deve buscar uma compensação pela correção paga nesses 14 anos desde que foi feito o acordo da dívida. “O IGP-DI cresceu 35% a mais que o IPCA de 1998 para cá.” Darcy prega uma compensação retroativa, fundamental para diminuir o estoque da dívida e o valor das parcelas, que consomem 13% da arrecadação do Estado. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, o economista aponta o déficit na previdência como o maior problema do Estado e avalia que o piso nacional do magistério só poderá ser pago se o Palácio Piratini fizer uma alteração no plano de carreira dos professores.

Jornal do Comércio - O tema da renegociação da dívida do Estado com a União voltou à pauta. O governador Tarso Genro está mobilizando outros estados para questionar o cálculo do débito.

Darcy Francisco Carvalho dos Santos - Tem que ser feita uma nova renegociação, porque os juros hoje são muito menores do que na época do contrato (1998) e os indexadores estão diferentes da realidade da época. O IGP-DI cresceu 35% a mais que o IPCA de 1998 para cá. Isso é muita coisa em 14 anos. Mas também é preciso dizer que não é sempre que o IGP-DI é maior. Ano passado, por exemplo, o IPCA cresceu mais. Então, além do indexador, defendo que se deve mudar a taxa de juros, que hoje é de 6%. E pegar um desconto retroativo referente a esses 35% de diferença.

JC - Por que mudar a taxa de 6% de juros?

Darcy - Se pegarmos as taxas internacionais hoje, o mundo nunca teve tanta liquidez... Então, 2% estaria bom. Aliás, entendo que só o IPCA já estaria muito bom, não precisa pagar mais juros. E, mexendo nos juros, há uma solução de longo prazo, com o tempo a dívida vai sendo paga e diminui.

JC - E no curto prazo? O governo entende que o comprometimento de 13% da receita para pagar a dívida compromete o funcionamento do Estado.

Darcy - O governo está pensando em reduzir de 13% para 9%. Isso é bom para o curto prazo, mas o estoque da dívida não vai decrescer. Ou seja, vai aliviar apenas o governo atual. Se for só isso, é uma solução em curto prazo e um problema gerado a longo prazo.

JC - Essa proposta não é boa para o Estado?

Darcy - É boa desde que conjugada com outras medidas para o longo prazo. O melhor seria conjugar essa redução no comprometimento da receita às três medidas que citei: mudar do IGP-DI para IPCA, cobrar retroativo os 35% de diferença entre os dois indexadores nesses 14 anos, e cortar os juros.

JC - Qual é a importância de incluir essa cobrança retroativa? Cortar os juros já não será uma grande vantagem ao Estado?

Darcy - O índice oficial de inflação no Brasil é o IPCA. Vale para tudo, metas de inflação do governo... E, de 1998 para cá, houve uma diferença de 35% do IGP-DI em relação ao IPCA. Isso não influi na prestação que o Rio Grande do Sul paga, mas é fundamental para reduzir o estoque total da dívida. Seria algo como R$ 10 bilhões a menos. E com um estoque menor, melhora a situação e é provável que o cálculo da parcela a ser paga fique abaixo dos 13% da receita corrente líquida real do Estado. Então, é preciso não só cortar os juros e passar para o IPCA, mas também retroagir.

JC - Foi um mau negócio o acordo da dívida de 1998?

Darcy - Foi um acordo quase de pai para filho, excelente, porque salvou os estados do colapso financeiro. No Rio Grande do Sul, por exemplo, entre 1971 e 1998, a dívida do Estado foi multiplicada, cresceu 27,4 vezes em valores constantes, tirando a inflação. Depois do acordo, de 1998 para cá, ela se estabilizou, não cresceu nem diminuiu.

JC - Por que crescia antes?

Darcy - A principal causa é o valor dos juros, muito altos, pela política econômica do governo federal, principalmente na década de 1990. Também teve o Proes (Programa de Incentivo à Redução da Presença do Estado na Atividade Bancária), que liberou cerca de R$ 9 bilhões em dinheiro novo para salvar o sistema financeiro do Estado, o Banrisul. E a União afrouxou o controle, aí entra a nossa parte de culpa: déficits primários no Estado.

JC - Por muitos anos...

Darcy - Durante 28 anos - 1971 a 1998 - tivemos déficit todos os anos, gastamos, na média anual, 16% além da receita. O que nos salvava nesse meio tempo era a inflação. Enquanto a inflação era alta - especialmente em dois governos, do Pedro Simon (PMDB, 1987-1990) e do Alceu Collares (PDT, 1991-1994), tivemos 20% de receita financeira motivada pela inflação. Com o Plano Real, acabou a receita inflacionária e o déficit ficou visível. Aí começaram as privatizações, o uso do caixa único, parou de se aplicar o que se aplicava em educação...

JC - A partir do governo Antonio Britto (PMDB, 1995-1998)?

Darcy - O governo Britto fez as privatizações. Olívio Dutra (PT, 1999-2002) herdou um pouco do dinheiro das privatizações e fez saques do caixa único do Estado. O governo Germano Rigotto (PMDB, 2003-2006) continuou fazendo e a governadora Yeda Crusius (PSDB, 2007-2010) também usou um pouco do caixa único. Olívio e Rigotto fizeram ajuste fiscal, deram sua parcela de esforço, até porque o acordo da dívida os obrigou a isso. Mas quem aprofundou o ajuste fiscal foi Yeda. Antes dela, os governos só fizeram investimento com financiamento do caixa único. Ela conseguiu gerar margem para investimento.

JC - Investir a partir da receita maior do que a despesa...

Darcy - Os governos anteriores até fizeram investimentos maiores, mas com financiamento. A margem para investimento começou a ser positiva só em 2008, essa é a diferença de Yeda. Ela também foi ajudada por dois anos de excelente arrecadação. Mas desde 1971, o resultado primário era negativo. Aí dizem: “Ah, antes se faziam altos investimentos, 30% da receita”. Mas isso era em função de um alto déficit também. E a situação era melhor, havia menos inativos...

JC - E o gasto do Estado de 13% da arrecadação para pagar a dívida com a União?

Darcy - Quando foi feito o acordo, em 1998, a União assumiu toda a dívida em títulos do Estado, e 90% do dinheiro que o governo federal colocou nos estados foram para Rio, São Paulo, Minas e Rio Grande do Sul, os maiores devedores. Foi estipulado um prazo de 30 anos para pagar a dívida, juros de 6% ao ano, e correção pelo IGP-DI. Como a prestação ficaria muito grande, criaram esse limite de 13% da receita corrente líquida real.

JC - E se a parcela fosse superior a esse valor?

Darcy - O excedente ficaria como resíduo, a ser pago depois dos 30 anos em mais 10 anos, nas mesmas condições do contrato. Mas esses 13% incluem o acordo principal da dívida, Proes e uma série de operações com o governo federal que já existiam. E tudo isso não está sendo pago por causa do limite dos 13%. Por isso, gera resíduo e, mesmo pagando, a dívida cresce mais.

JC - E isso acontece só no Rio Grande do Sul ou se pode mobilizar outros estados?

Darcy - Em 31 de dezembro de 2000, havia seis estados que deviam mais de duas vezes o valor de sua receita corrente líquida. Em 31 de dezembro de 2010, só o Rio Grande do Sul devia mais. Em relação à receita, a maior dívida é a do Estado. Não que o Rio Grande do Sul tenha feito um contrato pior do que os demais. O problema é que a nossa dívida era muito grande. Então, as bondades do acordo (estabelecer um teto para as parcelas) tornam a situação pior.

JC - Bondades porque o Estado poderia estar pagando mais do que 13% da receita?

Darcy - Muito mais. A União só tem uma culpa: os juros altos. Dezoito estados reduziram suas dívidas entre 87% e 50% em 10 anos, de 2000 a 2010. Quem reduziu pouco foram os maiores devedores - Rio Grande do Sul e São Paulo.
JC - O governador Tarso diz que as contas estão equacionadas. E está aumentando salários, apostando no crescimento da arrecadação, e contraindo empréstimos para investir. Até que ponto é sustentável essa política?
Darcy - Estamos no limite da Lei de Responsabilidade Fiscal. Com esses empréstimos, é bem provável que o limite seja ultrapassado. Ou seja, o problema é que o próximo governo não vai ter limite de endividamento. E ainda vai receber o Estado com um enorme déficit, porque se sair a proposta para os professores, o grande aumento é a dois meses do fim do governo, lá em novembro de 2014, quando o Estado não terá margem para investimento e o crédito junto à União já terá sido gasto.

JC - Resolve a situação no atual governo, mas a gestão 2015-2018 enfrentaria dificuldades?

Darcy - Exatamente. Resolve a situação do governo Tarso. Até porque não tem como pagar o piso nacional do magistério. E não é por causa do reajuste de 22% do Fundeb, não tem como pagar mesmo em condições normais.

JC - Mesmo pelo INPC?

Darcy - O governo projeta pagar R$ 1.260,00 em novembro de 2014, mas esse já é o valor atual do piso pelo INPC, no próximo ano já vai subir. E com esse índice Fundeb nem se discute, não tem como. E mesmo que aceitasse pagar agora R$ 1.451,00, o problema são os multiplicadores do plano de carreira dos professores, o quadro chega a multiplicar por 4,5 vezes o valor do salário de uma ponta a outra. O problema é o plano de carreira.

JC - O senhor quer dizer que só é possível pagar o piso se mudar o plano de carreira?

Darcy - Só... E mesmo mudando o plano de carreira, se continuar o reajuste pelo Fundeb, no ano que vem já subiria mais 21%, não tem como. Então, para pagar o piso tem que mexer em duas coisas: plano de carreira e o reajuste do Fundeb.

JC - O governador fala que o Estado vai se desenvolver e aumentar a receita e por isso vai poder ampliar seus gastos.

Darcy - O problema é que tem vinculações constitucionais da receita. É possível aumentá-la, mas não o suficiente. Tem 35% para a educação, a saúde, 12%, e na prática vai ser 16%, porque 4% era saúde dos servidores e previdência da saúde, que não pode ser incluído. E de tudo que o Estado arrecada, uma parte vai para os municípios, ciência e tecnologia precatórios, dívida... Essa soma das vinculações constitucionais dá 65% da receita.

JC - E os outros 35%?

Darcy - Folha, secretarias - com exceção da educação e saúde -, os outros poderes, nem estou incluindo investimentos. Isso dá 45%, ou seja, faltariam 10%. E só para empatar, seria preciso aumentar a receita em 30%, porque a cada R$ 3,00 arrecadados, R$ 2,00 já estão vinculados. É o desequilíbrio estrutural do Estado. Se for cumprir a Constituição, não existe equilíbrio. E para dar um incremento de 30% na arrecadação, leva mais ou menos seis anos; quando chega lá, todos esses itens terão crescido também...

JC - É um problema estrutural. Tem como resolver?

Darcy - A curto prazo não tem como resolver. E se não mexer na previdência - aliás, o grande problema financeiro do Estado são os inativos, não é a dívida. A previdência consome mais ou menos 30% da receita. E temos 53% de inativos e 47% de ativos. Para cada R$ 100,00 gasto com ativos, são R$ 115,00 com inativos. No magistério, de cada R$ 100,00 gastos com que está trabalhando, são R$ 150,00 para quem está aposentado. O déficit previdenciário é de R$ 6 bilhões por ano. O projeto do governo (de aumento da alíquota), embora não resolvesse, seria um paliativo. E o fundo complementar vai ajudar a longo prazo.

Pefil

Darcy Francisco Carvalho dos Santos, 64 anos, nasceu em Caçapava do Sul. Veio aos 20 anos para Porto Alegre, onde se formou em Ciências Contábeis (1971) e Ciências Econômicas (1980), ambos pela Ufrgs. Tem especialização em Integração Econômica e Comércio Internacional pela Pucrs (2008). Trabalhou como contador até se tornar funcionário público concursado - primeiro, auditor público externo no Tribunal de Contas do Estado, a partir de 1974; depois, auditor de finanças públicas da Secretaria Estadual da Fazenda. No governo Pedro Simon (PMDB, 1987-1990), foi cedido à Secretaria da Educação para ser diretor administrativo-financeiro. Também trabalhou como diretor-geral da Secretaria da Justiça. Nos dois casos, Bernardo de Souza era o secretário de Estado. Nos anos 1990, Bernardo assumiu uma cadeira de deputado. Darcy filiou-se ao PPS e atuou como assessor na Assembleia Legislativa. Estudioso das finanças públicas do Estado há três décadas, publicou dois livros sobre o assunto. Deixou o PPS em 2011 e agora integra um grupo de estudo da bancada do PSDB na Assembleia.

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